terça-feira, 21 de agosto de 2012

Como respirar arsênico (por pouco tempo)

     “O processo científico é naturalmente auto-corretivo, com cientistas tentando reproduzir resultados já publicados.”
     Foi com o uso do corolário acima, conhecido pelos cientistas, que a revista “Science” reconheceu  que uma das descobertas recentes mais intrigantes da biologia estava errada.
     Em dezembro de 2010, Felisa Wolfe-Simon, do Instituto de Astrobiologia da Nasa, tinha apresentado ao público uma bactéria que não usava o elemento fósforo em seu metabolismo, pois o tinha substituido por arsênio, o componente central do veneno "arsênico". A mera troca de um elemento pode soar irrelevante para leigos em bioquímica, mas se a cientista estivesse correta, a GFAJ-1, o micróbio encontrado no lago Mono, na Califórnia, seria único.
     Até hoje, todos os organismos vivos conhecidos dependem crucialmente de seis elementos em seu metabolismo: oxigênio, carbono, hidrogênio, nitrogênio, enxofre e fósforo. Se este último pudesse ser trocado por arsênio, a compreensão de cientistas sobre as condições básicas para o surgimento da vida deveriam ser repensadas. Apelidada até de “bactéria extraterrestre”, a GFAJ-1 seria um sinal de que a vida poderia emergir em locais jamais imaginados.
     A consagração, porém, durou muito pouco. O trabalho de Wolfe-Simon começou a ser atacado logo após a publicação, e outros biólogos a criticaram por ter sido apressada em tirar algumas conclusões. Rosie Redfield, da Universidade da Columbia Britânica, tentou reproduzir o experimento original feito pela cientista da Nasa, e obteve resultados diferentes. Esse e outros argumentos, porém, foram insuficientes para convencer a Nasa a retratar o estudo.
     O número 6093 da revista “Science”, porém, traz não apenas um, mas dois estudos explicando o que estava errado no trabalho de Wolfe-Simon.
     Um deles, liderado por Tobias Erb do ETH (Instituto Federal de Tecnologia da Suíça), em Zurique, mostra que, apesar de a bactéria ser capaz de viver num meio altamente contaminado por arsênio, seu organismo precisa de um pouco de fósforo para sobreviver. A cientista da Nasa, portanto, havia concluído que o micróbio metabolizava arsênio sem ter a certeza de que não havia fósforo em suas amostras.
     O outro estudo, liderado por Marshall Reaves, da Universidade de Princeton, contraria afirmações de Wolfe-Simon de que moléculas essenciais ao funcionamento dos organismos — como DNA e os lípídios das membranas celulares — poderiam trocar o fósforo por arsênio.
     A “Science” cumpriu seu papel ao buscar os melhores argumentos contra um estudo controverso e fez o certo em se esforçar para publicar os trabalhos que contrariam uma descoberta que ela própria tinha alardeado. Num caso desses, é a reputação da publicação que está em jogo, e os editores da revista se sairam da melhor forma possível.
     Para Wolfe-Simon e para o Instituto de Astrobiologia da Nasa, porém, o futuro não será tão fácil. O erro talvez não seja feio o suficiente para que a cientista seja crucificada eticamente, mas, ao que tudo indica, errar foi um pecado menos grave do que insistir no erro. Pareceristas que lerem seus estudos futuros certamente terão cuidado redobrado antes de endossar suas conclusões.
     A “Science”, para qualquer efeito, tentou resgatar aquilo de bom que sobrou do estudo original da pesquisadora, no comunicado que publicou recentemente. Tecnicamente o estudo não foi retratado, e a revista reconhece o mérito de Wolfe-Simon de ter atentado para a importância da GFAJ-1, “um organismo de resistência extraordinária que deve ser de interesse em mais estudos, particularmente relacionados a mecanismos de tolerância ao arsênico”.
(Fonte: www.folha.com.br, por Rafael Garcia)

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